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sábado, 20 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XC)




A velhice é território maldito. A consciência de que a vida está se extinguindo causa danos irreversíveis. Nem todos os atingidos por essa fatalidade reagem de maneira satisfatória. Os herdeiros são os primeiros que enlouquecem.

Muitas histórias podem ser contadas a partir da velhice. As mais banais costumam relacionar essa fase da vida com a experiência, a generosidade e a submissão. Simultaneamente, todos os seres humanos costumam fantasiar pais e mães, tias e tios, avós e avôs como pessoas sem máculas, sem defeitos, exemplos de bondade e carinho.  Na vida “real”, nem sempre é assim. A idade cronológica não costuma eliminar os defeitos, as idiossincrasias e os desvios de caráter.

A idade está relacionada com centenas de doenças, complicações amorosas, diversos graus de violência, incontáveis acidentes e decepções que se somam com outras decepções. Quando se alcança a melhor idade (que é a forma com que os cínicos definem a velhice), resta viver com a aposentaria ridícula, algumas histórias amargas, milhares de ressentimentos e a solidão – protagonizada pelo abandono parental.  

Foi com o propósito de mapear algumas situações relacionadas com a decomposição física e intelectual de pessoas com mais de 65 anos que Alê Motta escreveu os 30 contos curtos que compõem Velhos (São Paulo: Reformatório, 2020). Algumas dessas histórias são tristes porque insinuam que o isolamento afetivo tem parentesco com a morte. Em paralelo, há outras situações e outros sentimentos. A personagem que se arruma para ir ao shopping e conversar com qualquer desconhecido ilustra um movimento de resistência: Só volto para casa quando me sinto feliz.




Quem tem alguma afinidade com o tema provavelmente vai se lembrar de Memento Mori (São Paulo: Companhia das Letras, 2001), o estranho e engraçado romance de Muriel Sparks. Nesse livro, os personagens (quase todos na faixa dos 70, 80 anos) se recusam a ficar esperando pelo momento em que tudo termina. Preferem se comportar como adolescentes mal-educados. Na primeira oportunidade mentem, traem, roubam e tentam machucar uns aos outros. Se não estivessem tão perto da morte, poder-se-ia dizer que estão lutando pela vida. Desesperadamente.

Os personagens de Alê Motta não são tão radicais. Eles estão em outra escala. As inquietudes são mais sutis. Por isso, muitas das situações não apresentam novidades. A ideia é facilitar a compreensão e permitir que o leitor reconheça nessas histórias o caso de algum parente ou vizinho – ou, talvez, em mergulho crítico, projete o próprio futuro.

Diversos contos apresentam o humor como uma espécie de válvula de escape para o traumático. Isso não quer dizer que os personagens são edulcorados e que há ambição de que tudo termine bem. Ao contrário, diversas narrativas revelam a desesperança, o passado opressor e o grotesco. A crueldade dos parentes (filhos, sobrinhos, genros e noras) aparece em cena com frequência. Sentimentos são moídos rapidamente por interesses pouco claros. Não há remédio que cure mágoas e dores.

O que está explicito em Velhos é relativamente simples e pode, salvaguardando as exceções, ser resumido no desfecho de um dos melhores contos do livro: não tenho mais paciência para esse papel de velhinho bom. Qualquer hora eu toco o terror nessa casa.

2 comentários:

  1. Lendo seu texto, lembrei de um filme protagonizado pelo Clint Eastwood, onde o vovô virá um traficante muito procurado. Gostei desse filme. Gostei do texto!

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  2. O que é a velhice? Lembrei do livro do Bobbio

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