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segunda-feira, 22 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XCII)




Estou prestes a iniciar uma guerra. Buda não me abençoou com o dom a paciência. Mas, nem mesmo Sua Santidade, o Dalai Lama, teria serenidade para suportar cinco, seis ligações diárias oferecendo planos de telefonia e internet.

Várias vezes deixei o que estava fazendo para atender ao telefone (fixo e celular), sempre com medo de alguma notícia desagradável sobre o estado de saúde de minha mãe, que está com Alzheimer e diversas outras complicações.

Tenho ciência de que a remuneração do pessoal do telemarketing é ridícula e que eles precisam alcançar metas (provavelmente inatingíveis) em um trabalho estressante. Sou solidário. Não desejo esse tipo de sofrimento para o meu pior inimigo (desejo sim, mas o protocolo de convivência social exige a mentira). A questão é que não tenho calma para ouvir discurso decorado, sem a mínima empatia entre o que é repetido ad nauseam e o que sente o sujeito que está emitindo a mensagem. Nada pessoal, mas prefiro os robôs dos livros e filmes de ficção científica.  

As ligações acontecem nos horários mais esdrúxulos. Várias vezes o telefone tocou depois das oito da noite. Alguém determinou que sábados, domingos e feriados são dias propícios para oferecer internet super-rápida. O sujeito está em casa, preocupada com a temperatura da cerveja ou com o ponto da carne na churrasqueira, então não vai se incomodar em assinar um novo plano de negócios, vai?  

Estou convencido que isso acontece por questões de fuso horário. Com as mudanças climáticas, o aumento do buraco na camada de ozônio, as calotas polares derretendo e a alteração da linha do Equador, tudo ficou confuso. Ou difuso. Sei lá. Falta aliteração para esse tipo de interpretação multiuso.



Outro dia, tentaram uma abordagem menos engessada. A voz me perguntou se eu estava bem. Respondi com algum grunhido, nada muito diferente da reação instintiva que esboço diante das situações que me desagradam. Quem estava do outro lado da linha, em exercício de falsa intimidade, queria saber se eu estava com algum problema. Será que desejava me ajudar? Claro que não! Depois de alguma enrolação, talvez umas duas frases de autoajuda, o golpe seria aplicado. Ou seja, o sujeito queria ser ajudado. Bastava comprar o que ele estava vendendo.

Depois de alguns segundos de reflexão, pensei em esticar a conversa. Talvez inventar alguma doença contagiosa, provavelmente o Covid-19 (que está na moda), e, entre lágrimas, descrever minunciosamente as dores que acometem o corpo que maltrato diariamente. Desisti. Na quarentena, deve prevalecer a economia emocional. Então, mandei a pessoa plantar batatas no asfalto com enxada de borracha. Quer dizer, as palavras utilizadas na ocasião foram outras e não podem ser mencionadas agora – em respeito aos valores fundamentais da família tradicional brasileira.

Na maioria das vezes, desligo o telefone no momento que percebo o motivo da ligação. Mas isso está ficando chato e não resolve o problema. Um amigo me recomendou contar que estou desempregado e, antes de qualquer reação do outro lado, perguntar: será que a empresa de telemarketing não está contratando novos funcionários?

Parece que essa estratégia funciona e o nosso nome desaparece instantaneamente do cadastro de futuras vítimas. Não custa tentar. No amor e na guerra, nenhuma arma pode ser considerada excessiva (dizia minha avó, a sábia).

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