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segunda-feira, 29 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XCIX)


Woman in the rain, oil on canvas, Andrew King

Era quase noite e chovia. Torrencialmente. A rua deserta e a pouca visibilidade contribuíam para ampliar a sensação de desconforto. Os óculos – inúteis naquele momento – estavam pendurados na camisa. O vento insistia em empurrar o guarda-chuva para fora de minhas mãos.

Estava indo para a rodoviária. A razão de estar ali, naquele lugar, naquele momento, não é importante, é apenas um marcador que estou utilizando para situar a história no tempo e no espaço. O que quero contar é de outra natureza.

– Nunca esqueça isso, Jesus te ama.

O susto foi grande. Não pela frase, que se tornou um clichê, mas pela mulher – que surgiu não sei de onde. Não creio que fosse assombração, fantasmas ou alguma criatura de outra dimensão. Sei que isso não existe. Quer dizer,... De qualquer modo, concordo que a vida está repleta de enigmas.

Queria falar alguma coisa, talvez um mísero obrigado, mas, naquele instante, me faltaram as palavras. A angústia que acompanha a afonia se fez presente. Demorei alguns segundos para recuperar o controle da situação – era tarde demais, ela tinha desaparecido no meio da tempestade.

Imediatamente, percebi que estava me molhando. Por algum motivo, tinha fechado o guarda-chuva e, digamos assim, abraçado a chuva.

O que se seguiu foi o trivial. Fiz o que tinha que fazer e voltei para casa. Tomei um banho, bebi uma cerveja e esqueci o episódio – que ficou depositado em alguma gaveta da memória até alguns meses atrás, um pouco antes do início da quarentena.  



Fui ao centro da cidade, provavelmente para pagar alguma conta, não lembro exatamente o quê. E isso também não tem a mínima relevância. O que importa é que a vi. Quer dizer, não sei se era a mesma mulher. Depois de tanto tempo, certeza é algo que não existe. O que posso dizer é que me pareceu ser a mesma pessoa.

Era um dia de sol, mas – na minha fantasia – a mulher e a chuva estavam juntas, outra vez. Fiquei olhando de longe. Era como se estivesse brincando com aquele jogo em que é preciso procurar por sete diferenças em dois desenhos quase iguais. Conferi várias vezes os detalhes, procurando semelhanças, afastando as distinções. Não consegui concluir se era ou não a mulher que encontrei no temporal.

Alguma coisa me chamou a atenção do outro lado da rua. Foi só um instante. Quando voltei o olhar para o lugar em que ela estava, não mais a encontrei. Provavelmente entrou na galeria, pensei. Sem raciocinar, fui atrás. Como se fosse etérea, evaporou – ou algo similar.  

Foi o melhor desfecho possível. Não tenho a mínima ideia do que lhe diria se a localizasse. Lembrar da chuva seria patético. Possivelmente, ela me olharia incrédula, sem entender porque um desconhecido estava lhe atribuindo aquele tipo de comportamento. Ou, em hipótese mais assustadora, olho no olho, confirmasse a proposta religiosa e dissesse que essa minha busca por explicações evidenciava a força dos desígnios do Senhor.

Estou convicto de que, algumas vezes, deve-se manter fechado o baú do tesouro. O mistério pode ser mais valioso do que a verdade.


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