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quinta-feira, 18 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXXXVIII)




Na metade dos anos 70 do século passado, quando fui aluno do segundo grau (a terminologia da época), a vida dos estudantes era diferente. Livros técnicos eram difíceis de conseguir. O mercado comercial das apostilas ainda estava sendo desbravado. Computadores portáteis só existiam em filmes de ficção científica. Gravadores eram precários (ou muito caros ou muito difíceis de carregar). Nada mais restava para o aluno senão copiar, com caneta ou lápis, o material de estudo.

Atualmente, escrever à mão se tornou artigo raro. Conheço poucas pessoas que ainda praticam essa arte. Fico surpreso quando descubro alguém que possui caneta tinteiro. Ter uma Parker revelava poder aquisitivo (quase o mesmo efeito das Mont Blanc). Tenho um amigo que coleciona canetas tinteiro. Deve ter umas cem. Nos momentos de lazer, pasmem, escreve com elas!   
  
Durante um período, principalmente quando fui aluno da UFSC, carreguei um bloco pequeno. Fazia anotações, tentando tornar perene o que, durante a aula, era volátil. A grande dificuldade, mais tarde, era decifrar o que estava gravado no papel: meus garranchos não são muito legíveis – nem mesmo para mim. Esse foi um dos motivos porque troquei a escrita cursiva pela letra de forma.

Não tive aulas de caligrafia (será que ainda existem?) e, frequentemente, era confrontado com pessoas que tinham letra bonita. Escrever de forma harmônica e respeitando as linhas do caderno permitia uma espécie de distinção social. Motivo de orgulho familiar. O que não estava expresso, naquela época, é que a caligrafia estava relacionada com questões de gênero. A expressão letra de moça tinha como tradução capricho, elegância e feminilidade. Estava vetada ao homem que era homem uma escrita que demonstrasse delicadeza ou induzisse suspeitas sobre a sua masculinidade. Muitas contradições para pouca tinta.

Tive uma professora de biologia que defendia a tese de que aluno ocupado era aluno que não incomodava. Então, mal entrava na sala de aula e começava a ditar a matéria em alto e bom som. Pode ser também que ela estivesse apaixonada pela própria voz (essa hipótese deve ser descartada: a voz da mestra lembrava taquara rachada). Preenchi cadernos e mais cadernos com anotações sobre componentes celulares – felizmente, essas anotações se perderam e esqueci as diferenças entre complexo de Golgi e mitocôndria.  



Quando a máquina de escrever se tornou popular (e mais barata), a escrita passou a ser efetuada à máquina. Ninguém poderia almejar um emprego razoável se não soubesse datilografia. Para quem ambicionava ter algum tipo de relação com a escrita e a literatura, ter uma máquina de escrever era fundamental. Tive várias – inclusive uma elétrica (suprassumo da modernidade). Bons tempos. Para o bem ou para o mal, sou da turma que pratica a dedografia, um eterno catar milho, como se dizia antigamente.  

Com os computadores e os smartphones, a datilografia foi substituída pela digitação – que se espalhou pelo mundo como se fosse um vírus mortal.  Simultaneamente, há quem pense no corretor automático como uma vacina contra a ignorância gramatical. Obviamente, não o é. Jamais será.

O mundo ficou mais ágil e os conceitos estéticos adquiriram contornos inovadores. A escrita à mão perdeu a finalidade. Ou melhor, a indústria da informática (através de milhares de aplicativos) a transformou em outra coisa e que é difícil de ser definida. Espero que, assim como a humanidade evoluiu da escrita cuneiforme e dos hieroglifos para os alfabetos atuais, também possamos sobreviver a essas mudanças.  

Um comentário:

  1. Também datilografei em máquina tradicional e elétrica. Até hoje escrevi cadernos com letra manuscrita e digito. A escrita lança o ser humano na eternidade.

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